Os Tropeiros da Borborema podem ser considerados como elementos centrais na formação da identidade cultural campinense. Eles alimentam nossas memórias, com suas sagas e feitos, e dão um sentido particular a nossa origem.
Esse sistema de “ideias-imagens” do ser-de-campina, que também pode ser chamado de tropeiro-feirante, parece se estruturar a partir de três características fundamentais: a capacidade heroica de vencer desafios; o empreendedorismo desbravador e cosmopolita; e a adaptabilidade ao meio (e de fazer desse meio o centro de tudo).
Trata-se de um retrato simbólico (dos tropeiros) cuja idealização nos reporta necessariamente ao passado, mas a um passado (um “rever os antigos”) com sede de presente, do hoje, na intenção manifesta de fazer perpetuar esse traço inalienável do nosso imaginário coletivo.
As imagens ditas primordiais e os mitos precisam ser perenizados, cultuados e, quando necessário, revigorados. Não se concebe uma sociedade, uma civilização, sem seus heróis, suas histórias lendárias e míticas. O mito “relido” é parturiente de imagens-ideias de um “recordar”que anima (impulsiona) o presente. Não é a toa que quando ouvimos os tropeiros que “partiam mais cedo que a barra da aurora”, “nos tempos de outrora”, parece formar na nossa mente a imagem-sensação de ser incansável, de disposição titânica, e isso é exemplo de força civilizatória.
Platão, em sua obra clássica A Republica, nos sinaliza o caminho: “o mito foi salvo do esquecimento e não se perdeu. Ele pode, se lhe dermos crédito, salvar-nos a nós mesmos”. Os romanos têm em seu mito de origem, de Rômulo e Remo, personagens que foram alimentados por uma loba, a exaltação a figura do guerreiro.
Notar, por outro lado, que a historiografia tradicional teria os tratado (os tropeiros), de forma periférica, um tanto marginalizada, e o “tropeiro empreendedor” tornou-se uma espécie de “desconhecido”. Nesse sentido, a imagem-emoção das “tropas de burros que vem do sertão, trazendo em seu lombo, peles e fardos de algodão” tenderia a se distanciar, como ator operante, da centralidade dos ciclos de desenvolvimento da cidade. Esse ator-ideia, ou mito de origem, de valor arquetípico, se fazendo valer da linguagem junguiana, teria sido pouco captado e valorizado pela análise histórica linear e racional.
Ora, as Luzes só mostram e valorizam o que está claro, vício da modernidade; as sombras, as imagens profundas (primordiais), as ideias que fazem sonhar, no dizer de Bachelard, eram (ou são) lidas como ilusões, fantasias, por isso, fora da equação cartesiana do saber, e do fazer. Não fosse a poética genial de Raymundo Asfora que anunciou o recordar hoje é o meu lema do tropeirismo da Borborema, obra épica, musicada por Rosil Cavalcante e cantada pelo Rei do Baião, talvez poucos tivessem ouvido falar e se emocionado com esses heróis pouco explorados do imaginário campinense contemporâneo.
No quesito desafio, inclusive, surpreende a escolha da campina grande como lugar para o nascimento da Rainha, um planalto sem água, nem manancial de abastecimento por perto. Evaldo Gonçalves observou bem essa faceta do mito e da história. O ato de fincar morada na Rainha da Borborema já trazia consigo uma escolha de superação mítica. Ser resiliente era uma condição sine qua nom para enfrentar “a sede e a poeira do sol que desaba; que rolava o caminho que nunca se acaba”. A decisão, por si só, era uma decisão heroica… Nascemos sob o signo da crise hídrica, algo do nosso cotidiano, portanto, nunca foi nem será impeditivo ao nosso crescimento.
Pois bem. A obra arquitetônica e a escultura a ela acoplada (a frase pode ser lida em sentido inverso), é um conjunto de representações históricas e simbólicas destinado a (re)valorizar esse mito fundador da civilização campinense, os “Tropeiros da Borborema”. E exaltar o espírito empreendedor do campinense, a eles intimamente associado.
Quando, por exemplo, cantamos “foi grande por eles que foram os primeiros”, estamos realçando o traço de heroísmo e de orgulho desses desbravadores presente no mito de origem.
Sua marca, seu traço, sua concepção estética não se intimida em desconstruir a proporcionalidade e simetrismo entre as partes, o faz para provocar uma mudança de percepção, rompe-se a “lógica”, como a poesia nos ensinou: “o passo moroso; só a fome galopa; pois tudo atropela o passo da tropa”. “Atropela”, ou interpela, para nos levar da posição de observador para a de observado; de um olhar distante, impassível, para um olhar inundado de emoção.
E para isso, propõe um mergulho no nosso próprio imaginário, que é coletivo e é nosso (o ser-campinense); e o real e o imaginário vão ter, enfim, suas núpcias, em plena pós-modernidade, na leitura mais profunda do mito.
A leitura de verdades imersas, “escondidas” pela poética. E se caminhavam “as tropas cansadas e os bravos tropeiros buscando pousada”, representação do gene do desenvolvimento, da riqueza, tatuado menos “pelos duros chicotes que cortavam os lombos ou pelos ferimentos nos cascos” (símbolo de uma subjugação, a ser superada, da natureza ao progresso), e mais pela simbologia da perseverança e sentido logístico-distribuidor.
O conceito arquitetônico é, então, inundado pela carga simbólica do mito, e vai buscar, no diálogo entre o passado, o presente e o futuro, uma forma de expressão estética que use a força da beleza, sustentada por uma ideia, como elemento indutor de uma imersão.
Imersão cuja finalidade implícita é dar o devido valor a emoção heroica dos tropeiros, sem hipervalorizar a razão, a ciência, expressa no casulo espelhado de quem olha de uma perspetiva lateral.
Esse primeiro bloco é, pois, uma representação da Campina Hightech, da razão iluminista, de sua grandiosidade sofisticada e antenada com o mundo, por isso, o arrojo da sua estrutura suspensa, suas faces espelhadas e elementos metálicos, que representa A Rainha contemporânea, educada na Academia e disposta a avançar na sofisticação de sua força reluzente.
Mas se o presente é-lhe grandioso e o futuro promissor, olhemo-nos para o passado, na busca idílica da alma campinense, cujo paradigma mítico nos reporta aos Tropeiros da Borborema, suas sagas heroicas percorrendo sertões e cariris adentro. E essa busca nos leva ao íntimo-interior, casulo ôntico no qual foi forjada a alma desse povo lutador, incansável e inovador!
E nesse viés, o olhar perspetivo em planta-baixa, o olhar dos céus, melhor dizendo, da lua, desconstrói a leitura estética do mito prometeico, no sentido de fazer nascer uma nova imagem-emoção ou imagem poética: as curvas da estrutura metálica as quais representam duas mãos em forma de “cuia”, a buscar a água de beber na fonte, representação simbólica do tradicional açude velho, manancial divino sonhado no auge da sede atroz dos guerreiros incansáveis. E representação histórica de um passado real, pois teria sido naquele recanto a parada das tropas para matar a sede, daí o cognome “Berro D’água”.
Essa mesma água que vai dançar, ao som do hino em homenagem à alma campinense dos tropeiros, uma música que é quase um canto de dor, como o jazz é para os escravos da América do norte, mas uma dor que não dói mais, e sim emociona na esteira da saudade dos corações valentes, invencíveis. E nos eleva, ao som do inaudito, no dizer de Nietzsche, e aciona o nosso substrato mental, dando-nos força para ir à frente, na construção de um lugar melhor para se viver.
Esse sistema de “ideias-imagens” do ser-de-campina, que também pode ser chamado de tropeiro-feirante, parece se estruturar a partir de três características fundamentais: a capacidade heroica de vencer desafios; o empreendedorismo desbravador e cosmopolita; e a adaptabilidade ao meio (e de fazer desse meio o centro de tudo).
A obra precisava de um jardim, adorno que representa o flerte com a logística, vocação campinense de ser entreposto. Espécimes do sertão, cariri e brejo, plagas que nos circundam, compõem a vegetação e a embelezam. E as antigas moradoras, trasplantadas (os ipês) vivem na outra margem do açude, admirando a beleza de suas irmãs do verde.
Mas faltava o espaço para escrever o futuro, com o ardor do presente e o animus do passado, por isso, a obra fornece suas linhas amarelas, a cor solar de exaltação ao heroísmo, e o casulo abre-se como um caderno para receber nossos sonhos.
Sonhos que falem de um novo ciclo, que se anuncia, a partir das terras dos Afonsos, com a visão estratégica do tropeiro-logístico (do mito de origem) e da utopia possível do filho simples do funcionário da rede ferroviária, que vislumbrou, em meio ao cenário da mesmice irritante e estéril, tempos que precisam se renovar, pois Campina nasceu para sonhar grande!
E nada melhor do que a inspiração dos tropeiros, símbolo primordial que nos irriga e dá força, para nos conduzir, à frente de uma nave-casulo, rumo a um novo e duradouro ciclo de desenvolvimento econômico, sustentável e com justiça social, e ai poderemos cantar-sentir a inspiração-imagem dos versos do cearense genial:
“Riqueza da terra que tanto se expande
E se hoje se chama de Campina Grande
Foi grande por eles que foram os primeiros
Ó tropas de burros, ó velhos tropeiros.”